Pense na terra, o nosso lar. Deixe que os seus olhos absorvam as nuanças brilhantes e os sombreados mui delicados do pôr-do-sol ou do arco-íris. Enterre os dedos dos pés na areia e sinta a espuma ondulada e os borrifos da onda do mar. Visite um museu e estude a arte abstrata de borboletas — 10000 variedades, muito mais admiráveis que os desenhos dos modernos pintores abstratos; tudo condensado em delicadas amostras de material volante. Rodeado dessas coisas maravilhosas, é fácil acreditar num Deus amoroso.
Entretanto, o mesmo sol que esbanja as cores no firmamento pode também transformar o solo africano em uma superfície seca e lustrosa, cheia de pequenas rachaduras, trazendo desastre a milhões de pessoas. O constante ritmo retalhante da arrebentação pode, quando estimulado por uma tempestade, transformar-se num paredão da morte, de seis metros de altura, destruindo cidades e vilas. E as inofensivas amostras coloridas que passam a vida esvoaçando por entre as flores são agarradas e destruídas pela ferocidade constante dos ciclos vitais da natureza. Embora seja o mundo a vitrina de Deus, também é uma fortaleza rebelde. Pode ser uma coisa maravilhosa, mas pode igualmente ser coisa muito má.
Pense no homem. O mesmo país que produziu Bach, Beethoven, Goethe e Brahms trouxe ao mundo Hitler, Eichmann e Goering. O país que engendrou a Constituição dos Estados Unidos produziu a escravidão e a Guerra Civil. Há em todos nós traços de inteligência, criatividade e compaixão entrelaçados com traços de fraude, egoísmo e crueldade.
O mesmo acontece com o sofrimento.
Depois de um minucioso exame, o sofrimento pode parecer um amigo de confiança e digno. O sistema nervoso, quando marcado pelo gênio, pode ser apreciado na pintura primorosa de um Rafael. Do ponto de vista restrito de um biotécnico, a estrutura da dor certamente parece ser uma das maiores obras de Deus.
Entretanto, a dor chama a nossa atenção, não por intermédio do microscópio, mas mediante espasmos de tormento. Se relacionarmos cada sinal de advertência à sua causa específica, a estrutura da dor parecerá boa e em bom funcionamento. Mas se, em âmbito maior, virmos a humanidade contorcendo-se de dor, morrendo de inanição, sangrando; bilhões morrendo de câncer aos poucos. . . eis aí um problema. Os filósofos preferem o ponto de vista mais amplo, de maior perspectiva que discute “a soma total do sofrimento humano”, como se toda a dor humana pudesse ser extraída e colocada num grande frasco a fim de ser apresentada a Deus:
— Aqui está toda a dor e todo o sofrimento do planeta Terra.
Qual a razão de tanta miséria? — É um dilema. A dor podia ser um sistema de alarme suave e eficiente, mas há algo neste planeta em sublevação total. O sofrimento está-se alastrando e não pode ser controlado.
Neste livro ainda serão apresentadas pessoas com medula dorsal fragmentada e judeus sobreviventes do holocausto. São essas as pessoas com que precisamos nos defrontar. – Nenhuma racionalização piegas pode resolver suas indagações cortantes. São essas as pessoas que levantam a questão:
— Onde está Deus quando chega a dor? Se a nossa fé não lhes souber responder, nada mais podemos dizer a um mundo alquebrado.
O problema da dor é muito mais profundo do que o simples reflexo das células nervosas. Já vimos exemplos de “dor útil”, isto é, da dor avisando e protegendo. Mas, o que dizer dos efeitos colaterais da dor? O que dizer das implicações psicológicas quando a dor corrói a alma, estimulando amargura e desespero? Por que há pessoas amaldiçoadas com artrite, câncer, ou defeitos de nascença, enquanto outras há outras saudáveis? Por que existem tantas causas de intensa “dor não-útil” disseminadas por toda parte?
Apesar de algumas pessoas não passarem por intenso sofrimento físico na vida, todas as pessoas que conheço têm alguma dor da qual não se livram. Pode ser personalidade torcida, um relacionamento rompido ou um sentimento consumidor de culpa. . . De qualquer maneira, a dor reaparece sempre corroendo a satisfação.
Para bem visualizá-lo é preciso que nos afastemos do microscópio onde observamos as células nervosas reagindo linda e obedientemente ao estímulo. Olhemos, depois, com todo o nosso interesse para o rosto dos angustiados seres humanos. A pergunta “Onde está Deus quando chega a dor?” torna-se “Onde está Deus quando a dor não cessa?” Como pode Deus permitir dor tão intensa e injusta?
Extraído do livro "Deus sabe que sofremos", de Philip Yancey
Extraído do livro "Deus sabe que sofremos", de Philip Yancey
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