Perigos na jornada das trevas

sábado, 2 de abril de 2011


João da Cruz (1542-1591) fez parte da tradição carmelita espanhola e foi amigo da famosa mística Teresa de Ávila. Ao descrever a “noite escura da alma”, ele fala de vários níveis, começando pela primeira noite e avançando depois para estágios mais profundos, com muitas referências à escuridão. Nessa veia, escreve:

A noite espiritual é o quinhão de muito poucos; e são aqueles que já fizeram algum progresso, exercitaram-se nele, de quem falarei mais abaixo. [...] Assim, Deus os deixa numa escuridão tão grande que eles, com suas imaginações e reflexos dos sentidos, não sabem para onde ir. Não conseguem avançar um único passo na meditação, como antes faziam, pois o sentimento interno agora está esmagado nessa noite e abandonado a uma aridez tão grande que já não têm nenhuma alegria ou doçura nos exercícios espirituais, como tinham antes, e no lugar delas só encontram insipidez e amargura. (John of the Cross, The Dark Night of the Soul, em An Anthology of Devotional Literature, comp. Thomas S. Kepler. Grand Rapids, Mich.: Baker, 1977, p. 284-285.)

João da Cruz advertia os peregrinos espirituais de que eles enfrentariam perigosnessa jornada de escuridão — perigos tão sérios que aquele que demandava a Deus poderia acabar desistindo:

Então, durante os períodos de secura, da noite dos sentidos... as pessoas espirituais têm de suportar grandes aflições... pois sentem medo de perder-se nessa estrada; pensando que estão arruinadas espiritualmente e que Deus as abandonou, porque não encontram nenhum socorro ou consolação nas coisas sagradas. [...] Nessas circunstâncias, se não encontrarem ninguém que entenda seu caso, essas pessoas desistem e abandonam a estrada certa.
João da Cruz dá conselhos práticos para os contemporâneos que empreendem uma demanda espiritual. Ele nos adverte que a meditação espiritual profunda não está isenta de riscos e que a intensificação da busca pessoal de Deus não garante necessariamente que Deus será encontrado. De fato, seria possível perder a fé nesse processo. Para evitar esse tipo de resultado, quem busca deve estar em contato com alguém que sabe como navegar nessa rota escura. Uma questão fundamental permanece, todavia, acerca do valor de seguir intencionalmente o caminho escuro — uma questão que é levantada de modo apropriado quando examinamos o testemunho de Meister Eckhart e de outros que buscaram esse caminho.

Conhecer a Deus por meio da escuridão da alma
É importante entender que, embora a escuridão da alma muitas vezes inclua um período de dúvida e incredulidade, o objetivo de quem demanda é atingir um plano espiritual mais elevado. De fato, muitos em sua busca celebraram o conceito da escuridão como um caminho para a luz. Os místicos católicos romanos demonstraram isso em sua vida e seus escritos. Meister Eckhart, místico alemão da Idade Média, foi um “entusiástico representante do caminho escuro”. Ele insistia que quando um
cristão realmente começa a descobrir a Deus percebe que Aquele que é descoberto não é Aquele que foi procurado. “Procure a Deus”, escreveu ele, “de modo a nunca encontrá-lo”. É esse sentido de não encontrar e não conhecer que caracteriza muitos dos peregrinos na senda escura.

Para Eckhart, buscar a Deus era o mais perto que se poderia chegar de conhecer a Deus, mas sua perspectiva desse Deus incognoscível caracterizava-se pelo desinteresse:

Lembre-se de que Deus tem sido irredutivelmente desinteressado desde o começo, e ainda é assim, e que a criação dos céus e da terra o afetaram muito pouco: é como se ele não tivesse criado uma única criatura. Mas vou mais longe. Todas as orações que um homem possa oferecer e as boas obras que ele possa praticar afetarão esse Deus desinteressado muito pouco: é como se não houvesse orações e boas obras.
No entanto, Eckhart perdia-se em Deus, convencido de que “minha bênção na eternidade depende de minha identificação com Deus”.

Extraído do livro "Fé e Descrença", de Ruth Tucker (Mundo Cristão)

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