O HOMEM QUE VEIO DE NOITE

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Comentário de William Barclay sobre João 3,1-6 

Quando João relata as conversações que Jesus mantinha com seus
interrogadores, segue certo esquema. Aqui vemos esse esquema com
toda clareza. O interrogador diz algo (versículo 2). Jesus responde com
uma declaração que é difícil de entender (versículo 3). O interrogador
compreende mal a frase (versículo 4). Jesus responde com uma
declaração que é ainda mais difícil de compreender (versículo 5). E logo
seguem um discurso e uma explicação. João emprega este método ao
relatar-nos as conversações que Jesus mantinha com aqueles que iam
perguntar-lhe coisas, a fim de que vejamos homens que pensam as coisas
e as descobrem por si mesmos e para que nós façamos o mesmo.
Quando Nicodemos se aproximou de Jesus, disse-lhe que ninguém
podia evitar sentir-se impressionado pelos sinais e maravilhas que fazia.
A resposta de Jesus é que o que importava verdadeiramente não eram os
sinais e maravilhas; o que importava era que na vida interior de um
homem se produzisse uma mudança tal que só pudesse considerar-se
como um novo nascimento.
Quando Jesus disse que um homem deve nascer de novo,
Nicodemos o interpretou mal, e essa interpretação errônea surge do fato
de que a palavra traduzida por de novo, a palavra grega anothen, tem três
significados diferentes. (1) Pode querer dizer desde o começo, por
completo, radicalmente. (2) Pode significar de novo, no sentido de pela
segunda vez. (3) Pode significar de acima, e, portanto, de Deus. É-nos
impossível expressar estes três significados em uma só palavra; e
entretanto, os três estão presentes na frase nascer de novo. Nascer de
novo significa experimentar uma mudança tão radical que é como um
novo nascimento; é como se à alma acontecesse algo que só pode
descrever-se como voltar a nascer de novo por completo; e todo esse
processo não é um lucro humano, porque provém da graça e o poder de
Deus.
Quando lemos o relato e as palavras de Nicodemos, à primeira vista
pareceria ter tomado o termo de novo na segunda acepção, e no mais
estrito sentido literal. Como pode um homem —disse— voltar a entrar
no ventre de sua mãe e nascer pela segunda vez quando já é velho? Mas
há algo mais que isso na resposta do Nicodemos. Em seu coração havia
um grande desejo insatisfeito. É como se Nicodemos tivesse dito, com
um desejo infinito, ansioso: "Você fala de nascer de novo; fala a respeito
desta mudança radical, fundamental, que é tão necessário. Eu sei que é
necessário: mas em minha experiência é não menos impossível. Não há
nada que queria obter mais que isso; mas é o mesmo que você me
dissesse, um homem adulto, que entrasse no ventre de minha mãe e
nascesse de novo." Não era o caráter desejável desta mudança o que
Nicodemos questionava; isso o sabia muito bem; o que questionava era
sua possibilidade. Nicodemos se encontra diante do eterno problema: o
problema do homem que quer mudar e que não pode efetuar essa
mudança por si mesmo.
Esta frase nascer de novo, esta idéia do renascimento, aparece ao
longo de todo o Novo Testamento. Pedro fala do Deus que nos fez
renascer a uma viva esperança (1 Ped. 1:3); fala de renascer não de
semente corruptível, mas incorruptível (1 Ped. 1:22-23). Tiago fala de
Deus que nos faz renascer pela palavra da verdade (Tia. 1:18). A
Epístola a Tito fala do lavar regenerador (Tito 3:5). Às vezes se faz
referência a esta mesma idéia como a uma morte, seguida por uma
ressurreição ou recriação. Paulo fala do cristão como alguém que morre
com Cristo e ressuscita para a nova vida (Rom. 6:1-11). Refere-se
àqueles que logo entraram na Igreja como meninos em Cristo (1
Coríntios 3:1-2). Se alguém estiver em Cristo é como se tivesse sido
criado de novo (2 Coríntios 5:17). Em Cristo há uma nova criação
(Gálatas 6:15). O novo homem é criado segundo Deus na justiça
(Efésios 4:22-24). A pessoa que está nos primeiros rudimentos da fé
cristã é um menino (Hebreus 5:12-14). Ao longo de todo o Novo
Testamento aparece esta idéia de renascimento, recriação.
Agora, de nenhum ponto de vista se trata de uma idéia que fosse
estranha a quem a escutasse na época do Novo Testamento. Os judeus
sabiam tudo sobre o renascimento. Quando um prosélito se incorporava
ao judaísmo, quando um homem de outra fé se tornava judeu, uma vez
que fosse aceito dentro do judaísmo, mediante a oração, o sacrifício e o
batismo, considerava-se que tinha renascido. "Um prosélito que abraça
o judaísmo", diziam os rabinos, "é como um menino recém-nascido". A
mudança era tão radical que desapareciam todos os pecados que tinha
cometido antes de sua recepção, visto que agora era outra pessoa. Até se
sustentava, em um nível teórico, que esse homem podia casar-se com sua
própria mãe ou irmã porque era uma pessoa completamente nova e todas
as relações anteriores ficavam destruídas.
O judeu conhecia a idéia do renascimento. O grego conhecia a idéia
do renascimento e a conhecia muito bem. A manifestação religiosa mais
autêntica dos gregos nesta época eram as religiões dos mistérios. Todas
as religiões dos mistérios se apoiavam no relato de algum deus que
sofria, morria e ressuscitava. Este relato era representado como uma peça
de teatro da paixão. O iniciado tinha que passar por um longo curso de
preparação, instrução, ascetismo e jejum. Logo se representava o drama
com música voluptuosa, um ritual maravilhoso, incenso e tudo o que
pudesse exercer alguma influência sobre os sentidos. À medida que
avançava a representação, o objetivo do adorador era fazer-se um com o
deus, identificar-se com ele, de maneira tal que pudesse passar por todos
os sofrimentos do deus e pudesse compartilhar sua vitória e sua vida
divina. As religiões dos mistérios ofereciam uma união mística com
algum deus. Quando se alcançava essa união, o iniciado era, segundo a
linguagem dos mistérios um nascido de novo. Os mistérios fechados
contavam entre suas crenças fundamentais: "Não pode haver salvação
sem regeneração". Apuleyo, que passou pelo rito de iniciação, disse que
tinha experimentado uma "morte voluntária", e que assim alcançou seu
"nascimento espiritual" e era como se "tivesse renascido".
Muitas das iniciações dos mistérios se celebravam à meia-noite
quando o dia morre e volta a nascer. Na Frígia, depois da iniciação,
alimentava-se o iniciado com leite como se fosse um menino recém nascido.
O mundo antigo conhecia muito bem o renascimento e a
regeneração. Desejava-o e o buscava em todas as partes. A mais famosa
das cerimônias dos mistérios era o taurabolium. O candidato ficava em
um poço. Sobre a boca do poço ficava uma tampa gradeada. Sobre esta
tampa se matava um touro, degolando-o. O sangue caía e o iniciado
levantava a cabeça e se banhava no sangue: lavava-se em sangue; e
quando saía do poço era um renatus ad aeternum, renascido para toda a
eternidade. Quando o cristianismo veio ao mundo com uma mensagem
de renascimento, trazia justamente o que todo mundo estava procurando.
O que significa, então, este renascimento para nós? No Novo
Testamento, e em especial no quarto Evangelho, há quatro idéias muito
relacionadas entre si. Existe a idéia do renascimento; existe a idéia do
Reino de Deus, ao qual o homem não pode entrar a menos que tenha
renascido; existe a idéia de ser filhos de Deus: e existe a idéia da vida
eterna. Esta idéia de renascer não é privativa do pensamento do quarto
Evangelho. Em Mateus temos a mesma verdade fundamental expressa
em forma mais simples e vivida: “Se não vos converterdes e não vos
tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”
(Mateus 18:3). Estas três idéias estão sustentadas por um pensamento
comum.

Extraído do Comentário do Novo Testamento de William Barclay

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