Duas Cidades

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012



O projeto do Iluminismo estava em nítida oposição à tradição cristã clássica, que sugeria um ponto de vista de conhecimento (ou epistemologia) muito mais humilde e realístico. Reconhecia que o que contamos como conhecimento é profundamente moldado por nossa condição espiritual. Este discernimento foi mais bem expresso por Agostinho em sua imagem das duas cidades: a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. Agostinho não estava falando sobre a divisão entre igreja e Estado, como pensam alguns; falava sobre dois sistemas de pensamento e lealdade. Ajudamos a construir a Cidade de Deus quando nossas ações são inspiradas e dirigidas pelo amor de Deus, sendo oferecidas ao seu serviço. Construímos a Cida­de do Homem sempre que nossas ações são incentivadas por amor-pró­prio e servem de propósitos pecaminosos.
Aplicado à vida da mente, a imagem das duas cidades significa que todos chegamos ao mesmo ponto já possuindo motivação espiritual, a qual afeta o que iremos aceitar como verdadeiro. Longe de sermos folhas em branco, nossa mente está colorida por nossa posição, quer a favor de Deus quer contra Ele. Como declara Romanos 1, ou adoramos e servimos ao verdadeiro Deus ou adoramos e servimos às coisas criadas (ídolos). Os seres humanos são inerentemente religiosos, criados para ter um relacio­namento com Deus. Caso o rejeitem, eles não deixam de ser religiosos; apenas encontram outro princípio básico sobre o qual fundamentar a vida.
Na maioria das vezes, esse ídolo é algo concreto, como segurança fi­nanceira ou sucesso profissional; em outros casos, é uma ideologia ou conjunto de crenças que substituem a religião. Qualquer que seja a forma que a idolatria tenha, segundo Romanos 1.18, os adoradores de ídolos suprimem ativamente seu conhecimento de Deus, procurando deuses substitutos. Tais indivíduos estão longe da neutralidade no que concerne à religião.
Claro que o cristianismo não é determinista. Ensina que, pela graça de Deus, o indivíduo pode ser iluminado pela verdade divina para curvar-se diante dEle, de modo a ser movido de um lado para o outro, ou seja, transferido do reino das trevas para o Reino de Cristo (Cl 1.13). Isso se chama conversão. Não obstante, em qualquer determinado ponto do tempo, estamos de um lado ou do outro. Sempre estamos interpretando nossa experiência levando em conta a revelação divina ou outro sistema de pensamento. Nosso chamado como cristãos é tirar progressivamente to­dos os "ídolos" que permaneçam em nossa vida de pensamento, a fim de exercermos cada aspecto de nossa vida como cidadãos da Cidade de Deus.
Nas últimas décadas, esta visão cristã clássica tem recebido apoio de fonte talvez surpreendente. A filosofia da ciência contemporânea rejeita a definição antiga e positivista de conhecimento, a qual considerava os cien­tistas de jaleco livres de preconceitos e crenças no momento em que entra­vam no laboratório. Hoje, os filósofos estão muito mais propensos a reco­nhecer o fator humano ao decidir o que conta como conhecimento do que a admitir que seja impossível abordar os fatos de uma posição filosófica neutra em sua totalidade. Todos encaramos o empreendimento científico como pessoas inteiras, levando ao laboratório uma panóplia de experiênci­as, pressuposições teóricas, crenças pessoais, ambições e interesses socioeconômicos. Estes preconceitos colorem praticamente cada aspecto do empenho científico: o que consideramos digno de estudo, o que espera­mos encontrar, para onde olhamos e como interpretamos os resultados.
"Todos os fatos estão carregados de teoria", é o slogan na filosofia da ciência hoje em dia. Um pouco exagerado, talvez, mas afirma que até o que consideramos "fato" é influenciado pelas teorias que levamos aos estudos científicos. Sempre processamos dados levando em consideração alguma estrutura teórica que adotamos para entender o mundo.

Extraído de "A verdade absoluta", de Nancy Pearcey (CPAD)

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