C. S. Lewis fala sobre a felicidade

quinta-feira, 5 de maio de 2011


Não fomos feitos em princípio para amarmos a Deus (embora fôssemos também criados para isso), mas para que Deus possa amar-nos, para que nos tomemos objetos em que o amor divino possa sentir "agrado". Pedir que o amor de Deus se satisfaça conosco na condição em que nos encontramos, é pedir que Deus deixe de ser Deus: porque Ele é o que é, o Seu amor deve, na natureza das coisas, ficar impedido e sentir repulsa por certas nódoas em nosso caráter, e porque já nos ama ele precisa esforçar-se para nos tomar dignos de amor. Não podemos sequer desejar, em nossos melhores momentos, que ele se reconcilie com nossas impurezas presentes -não mais do que a jovem mendiga poderia querer que o rei Cophetua se satisfizesse com os seus andrajos e sujeira, ou que um cão, tendo aprendido a amar o homem, pudesse desejar que este tolerasse em sua casa a criatura violenta, coberta de vermes e poluente da alcatéia selvagem.
O que chamaríamos aqui e agora de nossa "felicidade" não é o alvo principal que Deus tem em vista: mas, quando formos aquilo que Ele pode amar sem impedimento,
seremos de fato felizes.
Posso perfeitamente prever que o curso de meus argumentos venha a provocar um
protesto. Eu havia prometido que ao passar a compreender a bondade divina não nos seria pedido que aceitássemos uma simples inversão de nossa própria ética. Mas pode ser objetado que tal inversão foi justamente o que nos pediram que aceitássemos. A espécie de amor que atribuo a Deus, pode ser dito, é exatamente do tipo que nós seres humanos descrevemos como "egoísta" ou "possessivo", e
contrasta desfavoravelmente com a outra espécie que busca primeiro a felicidade do ente amado e não a satisfação daquele que ama. Não estou certo de que seja assim que me sinto mesmo em relação ao amor humano. Não acho que devo dar muito valor à amizade de amigo que se importe apenas com a minha felicidade e não proteste se cometo uma desonestidade. De todo modo, o protesto é aceito, e a resposta para ele colocará o assunto sob uma nova luz, e corrigirá o que tem sido unilateral em nossa discussão.
A verdade é que esta antítese entre o amor egoísta e o altruísta não pode ser aplicada sem ambigüidade ao amor de Deus pelas suas criaturas. Conflitos de interesses e portanto oportunidades seja de egoísmo ou generosidade, ocorrem entre os seres que habitam um mesmo mundo: Deus não pode de forma alguma competir com uma criatura, assim como Shakespeare não o faz com a personagem Viola. Quando Deus se toma Homem c vive como uma criatura entre as Suas próprias criaturas na Palestina, Sua vida é então de supremo auto-sacrifício e o leva ao Calvário. Um moderno filósofo panteísta declarou:
"Quando o Absoluto cai no mar se transforma em peixe"; do mesmo modo, nós, cristãos, podemos apontar para a Encarnação e dizer que quando Deus se esvazia da sua glória e se submete àquelas condições únicas sob as quais o egoísmo e o altruísmo têm um claro significado, Ele é considerado como inteiramente altruísta. Mas, em sua transcendência, Deus - como a base incondicional de todas as condições - não pode ser facilmente visualizado dessa forma.
Chamamos o amor humano de egoísta quando ele satisfaz suas próprias necessidades à custa daquelas do objeto - da mesma forma que um pai mantém em casa os filhos que deveriam, para o seu próprio bem, ser colocados no mundo. A situação implica em uma
necessidade ou paixão por parte do ser amado, e a desconsideração ou ignorância culpável das necessidades deste por parte de quem ama. Nenhuma dessas condições está presente na relação entre Deus e o homem. Deus não tem necessidades. O amor humano, conforme nos ensina Platão, é filho da Pobreza - de uma carência ou falta; ele é causado por um bem real ou imaginário no ser amado, que é necessário ou desejado pelo amante. Mas o amor de Deus, longe de ser causado pela bondade do objeto, faz surgir toda a bondade que este possui, amando-o primeiro para fazê-la existir e depois tornando-a digna de amor real, embora derivado. Deus é Bondade.
Ele pode conceder o bem, mas não pode necessitá-lo ou obtê-lo. Nesse sentido todo o Seu amor é infinitamente desprendido pela sua própria definição; ele tem tudo a dar e nada a receber. Assim sendo, se Deus fala algumas vezes como se o Impossível pudesse sofrer paixão e a plenitude eterna pudesse ter qualquer carência, e carência daqueles seres a quem concede tudo a partir da sua simples existência, isto só pode significar, caso signifique algo inteligível para nós, que o Deus do milagre tomou-se capaz de sentir tal anseio e criar em Si mesmo aquilo que nós podemos satisfazer. Se Ele nos
quer, esse desejo é de sua própria escolha. Se o coração imutável pode ser entristecido pelas marionetes que ele mesmo fez, foi a Onipotência Divina, e nada mais, que assim o sujeitou, voluntariamente, e com uma humildade que excede todo entendimento.
Se o mundo não existe principalmente para que possamos amar a Deus, mas para que
Ele possa amar-nos, esse mesmo fato, num nível mais profundo, é assim para o nosso bem.
Se aquele que em Si mesmo tem tudo escolhe necessitar de nós, é porque necessitamos de quem nos necessite. Antes e por trás de todas as relações entre Deus e o homem, como agora aprendemos no cristianismo, abre-se o
abismo do ato divino do puro dar - a eleição do homem, do nada, para ser o amado de Deus, e portanto (em algum sentido) o necessário e desejado de Deus, que a não ser por esse ato nada necessita nem deseja, desde que Ele eternamente possui, e é, toda bondade. E tal ato foi feito a nosso favor. É bom que conheçamos o amor, e é melhor ainda conhecermos o amor do melhor objeto, Deus. Mas conhecê-lo como um amor em que fomos primariamente os cortejadores e Deus o cortejado, no qual buscamos e Ele foi achado, em que a sua conformidade às nossas necessidades, e não a nossa às dEle, vieram primeiro, seria conhecê-lo numa forma falsa à própria natureza das coisas. Pois somos apenas criaturas: nosso papel deve ser sempre o do paciente para o agente, da fêmea para o macho, do espelho para a luz, do eco para a voz. Nossa mais elevada atividade deve ser a resposta, ne não a iniciativa. Experimentar o amor de Deus de forma verdadeira e não ilusória portanto é experimentá-lo como nossa rendição à Sua exigência, nossa conformidade ao Seu desejo: experimentá-lo de maneira oposta seria um solecismo contra a gramática do ser. Eu não nego, naturalmente, que num certo nível podemos falar corretamente da busca de Deus pela alma, e de Deus como receptivo ao amor da alma. Mas a longo prazo, a busca de Deus pela alma não passa de um aspecto ou aparência (Erscheinung) da busca da mesma por Ele, desde que a própria possibilidade de amarmos é um dom dEle para nós, e desde que nossa
liberdade não passa de uma liberdade de resposta melhor ou pior. Eu pe nso então que nada distingue tanto o teísmo pagão do cristianismo como a doutrina de Aristóteles de que Deus move o universo, sendo Ele mesmo imutável, como o Amado move o que ama.

Extraído de "O Problema do Sofrimento".

0 comentários:

Postar um comentário