O amor dá consentimento a todos e ordena apenas àqueles que consentem.O amor é abdicação. Deus é abdicação.Simone Weil
Os evangelhos afirmam que Jesus, o judeu que cresceu numa Galiléia rural, não era ninguém menos que o Filho do próprio Deus, enviado do céu para lutar contra o mal. Com essa missão em mira, certas perguntas acerca das prioridades de Jesus vêm de imediato à mente. No topo da lista, as catástrofes naturais: se Jesus tinha o poder de curar enfermidades e de ressuscitar os mortos, por que não atacar alguns macroproblemas como os terremotos e os furacões, ou talvez todo o sinistro enxame de vírus mutantes que infestam a terra?
Os filósofos e os teólogos acusam muitas das doenças remanescentes da terra de serem conseqüências da liberdade humana, o que suscita um conjunto todo novo de perguntas. Será que gostamos mesmo de tanta liberdade? Temos a liberdade de prejudicar e de matar uns aos outros, de lutar em guerras mundiais, de dilapidar nosso planeta. Somos até mesmo livres para desafiar a Deus, para viver sem restrições, como se o outro mundo não existisse. Pelo menos, Jesus poderia ter projetado alguma prova irrefutável para silenciar os céticos, inclinando as vantagens decisivamente a favor de Deus. Como esta, parece fácil negar ou desprezar a Deus.
O primeiro ato “oficial” de Jesus como adulto, quando foi para o deserto enfrentar o acusador face a face, deu-lhe oportunidade de resolver esses problemas. O próprio Satanás tentou o Filho de Deus a mudar as regras e a atingir os seus alvos por um método fascinante, um atalho. Mais do que o caráter de Jesus estava em jogo nas planícies arenosas da Palestina; a história humana estava na balança.
Quando John Milton escreveu a continuação do seu épico Paraíso perdido, fez da tentação, não da crucificação, o acontecimento central no esforço de Jesus por recuperar o mundo. Num jardim, um homem e uma mulher caíram na promessa feita por Satanás de um caminho para sobrepujar o estado que lhes fora atribuído. Milênios depois, outro representante — o Segundo Adão, na expressão de Paulo — enfrentou teste semelhante, embora curiosamente inverso. Você pode ser igual a Deus?, a serpente perguntou no Éden. Você pode ser verdadeiramente humano?, perguntou o tentador no deserto.
Quando leio a história da tentação, ocorre-me que, na ausência de testemunhas oculares, todos os pormenores devem ter vindo do próprio Jesus. Pelo mesmo motivo, Jesus sentiu-se obrigado a revelar aos discípulos esse momento de luta e de fraqueza pessoal. Creio que a tentação foi um conflito genuíno, não um papel que Jesus representou com um resultado predeterminado. O mesmo tentador que encontrou um ponto fatal na vulnerabilidade de Adão e de Eva, dirigiu o seu golpe contra Jesus com exatidão mortal.
Lucas prepara o cenário com um tom de drama ainda não revelado. “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde por quarenta dias foi tentado pelo diabo. Naqueles dias não comeu coisa alguma, e, terminados eles, teve fome.” Como simples combatentes em uma guerra, dois gigantes do cosmo dirigiram-se para um cenário desolado. Um, apenas iniciando sua missão no território inimigo, chegou em estado de grave fraqueza. O outro, confiante em seu território, tomou a iniciativa.
Espanto-me diante de certas minúcias da tentação. Satanás pediu a Jesus que transformasse uma pedra em pão, ofereceu-lhe todos os reinos do mundo e insistiu com ele para que pulasse de um lugar elevado para testar a promessa de Deus de segurança física. Que havia de errado nesses pedidos? As três tentações parecem prerrogativas de Jesus, as qualidades próprias de um Messias. Jesus não multiplicaria pão para cinco mil, exibição muito mais impressionante? Também derrotaria a morte e ressuscitaria para se tornar o Rei dos reis. As três tentações não parecem más em si mesmas — e no entanto alguma coisa claramente importante aconteceu no deserto.
O poeta britânico Gerard Manley Hopkins apresenta a tentação como uma espécie de encontro para reconhecimento entre Jesus e Satanás. Nas trevas da encarnação, Satanás não sabia com certeza se Jesus era um homem comum, uma teofania ou talvez um anjo com poderes limitados como ele próprio. Ele desafiou Jesus a realizar milagres como forma de reconhecer os poderes do seu adversário. Martinho Lutero vai mais longe, especulando que ao longo de toda a sua vida, Jesus “comportou-se com tanta humildade e associou-se com homens e mulheres pecadores, e por consequência não foi grandemente estimado”, devido ao que “o diabo fez vista grossa e não o reconheceu. Pois o diabo é míope; ele olha apenas para o que é grande e elevado e se apega a isso; não olha para o que está lá embaixo e abaixo dele”.
Nas narrativas do evangelho, os guerreiros desse combate singular tratam-se com uma espécie de respeito cauteloso, como dois lutadores andando em círculos no ringue. Para Jesus a tensão maior era talvez acima de tudo manter-se firme diante da tentação. “Por que simplesmente não destruir o tentador, salvando a história humana do seu tormento maligno?”, Jesus pensava.
De sua parte, Satanás ofereceu trocar o seu domínio sobre o mundo em troca da satisfação de prevalecer contra o Filho de Deus. Embora Satanás apresentasse os testes, no final ele é que foi reprovado. Em dois testes simplesmente pediu a Jesus que provasse quem era; no terceiro exigiu adoração, algo com que Deus jamais concordaria.
A tentação desmascarou Satanás, enquanto Deus permaneceu oculto. Se você é Deus, disse Satanás, então me ofusque. Aja como Deus agiria. Jesus replicou: Apenas Deus toma essas decisões; portanto, não faço nada sob o teu comando.
Extraído de "O Jesus que eu nunca conheci", de Philip Yancey
Extraído de "O Jesus que eu nunca conheci", de Philip Yancey
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