O sofrimento humano

quinta-feira, 4 de agosto de 2011



Existe no cristianismo um paradoxo no que se refere à tribulação. Bem-aventurados são os pobres, mas através do "juízo" (i.e., da justiça social) e esmolas devemos remover a pobreza sempre que podemos evitar a perseguição fugindo de cidade em cidade, e é permitido orar para que sejamos poupados, como fez nosso Senhor no Getsêmani. Mas, se o sofrimento é bom não deveria ele ser procurado em vez de evitado?
Respondo que ele não é bom de si mesmo. O que é positivo para o sofredor em qualquer experiência penosa é a sua submissão à vontade de Deus e, para os espectadores, a compaixão despertada e os atos de bondade a que esta os leva. No universo decaído e parcialmente remido podemos distinguir: (1) o simples bem procedente de Deus, (2) o simples mal produzido pelas criaturas rebeldes, e (3) a exploração desse mal por parte de Deus para atender ao seu propósito redentor, que produz
(4) o bem complexo para o qual contribuem o sofrimento aceito e o pecado de que nos arrependemos.
O fato de Deus poder extrair o bem complexo do simples mal não desculpa - embora pela misericórdia ele possa salvar - os que praticam o simples mal. Esta distinção é
essencial, As ofensas devem sobrevir, mas ai daqueles que as praticam; os pecados realmente fazem abundar a graça, mas não devemos fazer disso uma justificativa para continuar pecando. A crucificação é em si mesma o melhor, assim como o pior, de todos os eventos históricos, mas o papei de )udas continua simplesmente sendo mau. Podemos aplicar isto primeiro ao problema do sofrimento alheio. O homem misericordioso visa o bem de seu próximo assim como a "vontade de Deus", colaborando conscientemente com o "bem simples". O homem cruel oprime seu semelhante e o mesmo acontece com o simples mal. Mas ao praticar esse mal, ele é usado por Deus, sem seu conhecimento ou permissão, para produzir o bem complexo - e assim o primeiro homem serve a Deus como filho e o segundo como instrumento.
Você irá certamente realizar o propósito de Deus, de qualquer forma que possa agir, mas fará diferença em sua vida se servi-lO como Judas ou como João. O sistema inteiro, por assim dizer, é calculado em relação ao conflito entre homens bons e maus, e os frutos positivos da força, paciência, piedade e perdão para a crueldade do homem cruel, pressupõem que o homem bom geralmente continua a buscar o simples bem. Digo "geralmente" porque o homem tem algumas vezes o direito de ferir (ou mesmo, em minha opinião, de matar) seu semelhante, mas apenas quando a necessidade é urgente e o bem a ser alcançado óbvio, e no geral (embora nem sempre) quando o que inflige a dor possui autoridade definida para fazê-lo - a autoridade paterna derivada da natureza, a do magistrado ou soldado derivada da sociedade civil, ou a do cirurgião, procedente na maioria das vezes do próprio paciente.
Transformar isto numa provisão geral para a humanidade aflita porque "a aflição é boa para ela" (como o lunático Tamberlaine de Marlowe se gabava de ser o "flagelo de Deus") não seria quebrar o esquema divino mas apresentar-se como voluntário para o posto de Satanás dentro desse esquema. Se você fizer o trabalho dele deve ficar preparado para receber o salário pago por ele.
O problema sobre como evitar o nosso próprio sofrimento admite uma solução semelhante. Alguns ascéticos fizeram uso da autoflagelação. Como leigo, não ofereço opinião sobre a prudência de tal regime; mas insisto em que, quaisquer que sejam os seus méritos, a autoflagelação difere muito da tribulação enviada por Deus. Todo mundo sabe que jejuar é uma experiência diferente daquela de não jantar seja por acidente ou pobreza.
O jejum coloca em campos opostos a vontade e o apetite - a recompensa sendo o domínio próprio e o perigo o orgulho: a fome involuntária sujeita ao mesmo tempo os apetites e a vontade à vontade de Deus, fornecendo uma ocasião para nos submetermos e nos expondo ao perigo da rebelião. Mas o efeito redentor do sofrimento jaz principalmente em sua tendência a reduzir a vontade rebelde. As práticas ascéticas, que por si mesmas fortalecem a vontade, só são úteis pelo fato de capacitarem a vontade a colocar sua casa (as paixões) em ordem, como um preparo para oferecer o homem inteiro a Deus. Elas são necessárias como um meio; como um fim seriam abomináveis, pois ao substituir o apetite pela vontade e interrompendo-se nesse ponto, estariam simplesmente trocando o ser animal pelo diabólico.
Foi dito portanto com verdade que "somente Deus pode mortificar". A tribulação faz o seu trabalho num mundo onde os seres humanos estão naturalmente buscando, por meios comuns, evitar o seu próprio mal natural e alcançar o seu bem natural, pressupondo também tal mundo. A fim de submetermos a vontade a Deus, devemos ter uma vontade e esta precisa de objetos. A renúncia cristã não significa uma "apatia" estóica, mas disposição para preferir Deus a alvos inferiores embora legais.
Assim sendo, o Homem Perfeito levou ao Getsêmani uma vontade, e uma vontade
forte, de escapar ao sofrimento e à morte se tal fuga fosse compatível com a vontade do Pai, combinada com uma disposição perfeita para obedecer caso não fosse. Alguns dos santos recomendaram uma "renúncia total" no próprio limiar de nosso discipulado. Penso, porém, que isto só pode significar uma disposição total para toda renúncia particular 1 que possa ser exigida, pois seria impossível viver de momento a momento nada desejando além da submissão a Deus como tal. Qual seria então o material da submissão? Pareceria contraditório dizer: "O que quero é sujeitar o que quero à vontade de Deus", pois o segundo o que não tem conteúdo. Sem dúvida todos nós temos muito cuidado em evitar o nosso próprio sofrimento: mas uma intenção devidamente subordinada no sentido de evitá-lo, fazendo uso de meios legais, está de acordo com a "natureza" - isto é, com todo o sistema de serviço da vida da criatura para a qual o processo redentor da, tribulação é calculado.

Extraído de "O problema do sofrimento", de C. S. Lewis (Editora Vida)

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